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Nietzsche: Torna-te Quem Tu És e a Jornada da Autoafirmação

Nietzsche, em "Assim Falou Zaratustra – Das Ilhas Bem-Aventuradas", afirmou:

"Os figos caem das árvores, são bons e doces; quando caírem, rasga-se sua pele rubra. Um vento do norte sou eu para os figos maduros. Assim, como figos maduros vos caem estes ensinamentos, meus amigos: bebei do seu sumo e da sua doce polpa! É outono ao redor, e puro céu e tarde."



Nietzsche nos orienta: “torna-te quem tu és”, e ele mesmo segue essa fórmula em "Ecce Homo". Mas o que busca aquele que deseja “tornar-se aquilo que é”? Será que estamos tentando alcançar algum destino específico? Já sabemos que tal tarefa transcende o bem e o mal, mas qual seria o percurso adequado ou inadequado para isso? A resposta é que essa tarefa é, antes de tudo, uma vivência e, em segundo lugar, um cultivo. Certo, mas aonde queremos chegar? E como sabemos que finalmente nos tornamos aquilo que somos?

O Filósofo alemão continua:

"Mar e destino! Rumo a vós devo agora descer! Encontro-me diante de minha mais alta montanha e de minha mais longa caminhada: por isso devo descer mais profundamente do que jamais desci: – descer mais profundamente na dor do que jamais desci, até sua mais negra maré! Assim quer meu destino: pois bem, estou pronto. De onde vêm as mais altas montanhas?, perguntei certa vez. Então aprendi que vêm do mar. Esse testemunho está inscrito em suas rochas e nas paredes de seus cumes. É a partir do mais profundo que o mais elevado deve chegar à sua altura."



Nietzsche mergulhou profundamente na cultura europeia para diagnosticar seu tempo: o homem está cansado e esgotado. Nós lhe atribuímos uma finalidade e antecipamos tudo o que ele poderia/deveria fazer! O homem tornou-se um universal! Um Deus! Um caminho! Quando Nietzsche diz “Torna-te quem tu és”, ele não quer encaixar o ser humano neste modelo universalmente aceito e validado pelo senso comum. Pelo contrário, o grande perigo para o filósofo alemão sempre foi o desprezo pelo homem comum, o homem europeu, o homem médio. Por isso queremos superar o homem. A ele foi dado um objetivo fora de si, como se fosse imperfeito e precisasse buscá-lo em outro mundo.

Podemos então ver que a tarefa “torna-te quem tu és” é incomensurável e está além do que podemos compreender dentro da moral! Não podemos definir o que o homem é ou o que deve experimentar, muito menos cultivar, para tornar-se aquilo que ele é. Mas sabemos que ele deve abandonar este último ídolo: a humanidade, o bem e o mal. O que se “é” só pode ser entendido no sentido de um destino, uma necessidade, não uma possibilidade ou um dever.

Em "Gaia a Ciência", Nietzsche continua:

“No reencontro – A: Eu ainda o compreendo bem? Você está buscando? Onde está, no meio do mundo real de agora, seu canto e sua estrela? Onde você pode deitar-se ao sol, de forma que também lhe chegue um excedente de bem-estar e sua existência se justifique? Eu quero mais, não sou um buscador. Quero criar para mim o meu próprio sol.”

A experiência do niilismo revela que os valores presentes atendem apenas à nossa necessidade de sobrevivência (às vezes nem isso). Assim, estamos sempre em busca de algo fora de nós, como se um dia tudo fosse se unir e se completar, uma reedição do julgamento final cristão. Por isso a experiência do “Eterno Retorno” é vivida com tanto horror pelo homem religioso, medíocre, comum, neurótico: “Esta vida, de novo e de novo? Não, por favor, não… é muito sofrimento, me deem um céu, um lugar para descansar“. Apenas a transvaloração de todos os valores torna possível uma nova experiência com o real, com a vida, com aquilo que somos; somente ela pode superar o homem cansado de si mesmo. Sim, porque só nela está contida a fórmula “torna-te quem tu és”: depois do Camelo e do Leão está a Criança, aquela que aprendeu a dizer sim, aquela que, mesmo em seu processo contínuo, simplesmente é.

Surpreendente? Não… apenas a suspensão da intencionalidade e dessa razão pequena que quer impor deveres a nós. O que o “ser” quer aqui é sua própria afirmação! Existe uma confiança renovada no mundo ao seguir este caminho. Não há opção! Até aquilo que não queríamos é necessário querer. Como mar de forças que se afirma. Desejar a afirmação pura! Seja o que for, seja ela qual for, em nós, nos outros, no universo. Apenas assim nos tornamos um pedaço de fatalidade.

Não somos covardes, não precisamos instrumentalizar a vida por medo ou incapacidade. Suspendemos todas as mediações para enfrentar o mundo em sua máxima possibilidade, num mergulho vertical. E se todas as instituições até agora não fossem mais do que enganos? E se todos os ídolos que nos fizeram ajoelhar tivessem pés de barro? Estamos cansados deste mundo caducado! A vida em nós, o sentimento de potência em nós, luta contra tudo isso.

Como diz Nietzsche,

"Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!"

A paixão pelo conhecimento aqui se torna muito maior do que a ânsia por julgar a vida. Afinal, a vida não pode ser classificada com notas, como se pudesse ser reprovada ou não. Toda vida, independente de qual seja, afirma-se sempre o máximo que pode. É para isso que Nietzsche diz Sim! Mas é neste mesmo mar de forças que alguém torna-se quem é! Mergulhando de cabeça e apropriando-se delas, afirmando a afirmação, que cria, que é dadivosa, que é mutante! É este sim que abre o homem para o desconhecido, para a transmutação! Não é possível especificar o que é preciso atravessar para nos tornarmos o que somos; a tarefa de “tornar-se o que se é” é inteiramente aberta e fluída! Ela deixa de ser uma linha reta e encontra as linhas de fuga que antes sequer imaginávamos.

Em "Ecce Homo – Por que sou tão inteligente", Nietzsche afirma:

“Neste ponto, não há como evitar a resposta à questão de como alguém se torna o que é. E com isso toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo – do amor de si… Pois admitido que a tarefa, a destinação, o destino da tarefa ultrapasse em muito a medida ordinária, nenhum perigo seria maior do que perceber-se com essa tarefa. Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é.”

É preciso tornar-se aquilo que se é, precisamente aquilo que se é! Este é o destino inevitável! Não há outra possibilidade porque assim será, queiramos ou não! E o que somos? Já sabemos: Vontade de Potência e nada além disso! Toda a questão está aí: essas forças que se afirmam em nós, terão vazão? Para onde? Escavarão um buraco infinito em nosso interior e nos corroerão por dentro? Ou serão forças de criação de algo novo, inédito, expansivo?

O destino está em que essas forças sejam afirmação pura, seja para onde elas desaguem. Nietzsche lança o homem de volta ao mundo, a este mundo, nu e cru, e diz: “agora é necessário que tu o afirmes, com todas as suas forças! Apenas assim tu poderás tornar-te aquilo que tu és!”. Em troca, ele nos dá seus escritos, que não são um manual de como devemos ser e nos comportar, mas alargam o horizonte de possibilidades. “Retribui-se mal um mestre quando se permanece sempre e somente discípulo”.

Já sabemos, não há prescrição! Talvez apenas uma: viver! Mas viver levando em conta que a vida procura afirmar-se. É no fluxo da vida que se dá o cultivo das vivências; é no cultivo dos devires que o homem torna-se um destino. O paradoxo é o mesmo do nômade, que leva a casa nas costas. “Torna-te quem tu és”: ou seja, aproprie-se das forças que o constituem, fique atento ao que entra e sai, repare na superfície da pele, nos poros, carregue a diferença consigo. Quem disse que os conceitos filosóficos são abstratos e inúteis? Com certeza foi alguém que não leu Nietzsche e muito menos teve a chance de “tornar-se aquele que é”. Um conceito é uma máquina à qual nos acoplamos, é uma ferramenta, é um martelo, é um pincel, é um cinzel. E o pensamento é prática de si! Por isso, não podemos e nem devemos saber de antemão no que iremos nos tornar.

E quando sabemos que chegamos? A resposta pode ser esboçada no amor-fati. Somente quando a mais pesada das tarefas se torna leve é que sabemos que chegamos! Com um grande sorriso, a parte torna-se uma só com o todo! E, enfim, o “assim foi” transmuta-se em “assim eu quis”. O ser parte torna-se tomar parte. Somente deixando esta apertada casca chamada cultura, moral, bons costumes, homem, podemos enfim caminhar com mais leveza, talvez até como dançarinos! O amor-fati é a prova de que nos tornamos aquilo que somos: “eternamente gratos por nossa existência”, com suas dores, seus prazeres e tudo o que a compõe. A vida não é mais boa apesar da dor ou apesar dos pesares; ela é tudo que pode ser, e isso é ótimo! Apenas quem diz “Sim” para si mesmo e para esta existência aprendeu a ser aquilo que é.

“Querer” algo, “empenhar-se” por algo, ter em vista um “fim”, um “desejo” – nada disso conheço por experiência própria. Ainda neste momento olho para o meu futuro – um vasto futuro – como para um mar liso: nenhum anseio encrespa. Não quero em absoluto que algo se torne diferente do que é; eu mesmo não quero tornar-me diferente…

Assim, Nietzsche, em "Ecce Homo – Por que sou tão inteligente", encerra o pensamento de hoje.


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