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Sobre a verdadeira e Falsa Amizade por Sêneca

Atualizado: 17 de nov. de 2023

Buscando entender melhor as visões estoicas frente a Amizade me recordei de uma das cartas de Sêneca em que ele basicamente dá um puxão de orelhas em seu amigo Lucílio de modo a explicar-lhe porque se deve ter o cuidado ao chamar determinadas pessoas de amigos.

Pensando que você também poderia se interessar por este tema, corri lá para pesquisar qual era a bendita carta de Sêneca, pois já não recordava mais qual das centenas de cartas seria.

Para minha felicidade e creio que a sua também, achei a chamada carta número 3: Sobre a Verdadeira e Falsa Amizade.


Vou usar esta carta como base para o vídeo, mas iremos explorar algo mais além, busquei em outros filósofos estoicos qual a utilidade dos amigos dentro desta filosofia, e para minha surpresa e talvez sua, a descoberta vai além do que eu esperava ser.

Imagine a seguinte situação: Lucílio enviou uma carta para Sêneca através de uma terceira pessoa, a qual Lucílio menciona ser amigo em comum de ambos. Até aí nada demais, a questão porém que irritou Sêneca foi que Lucílio ao enviar a carta pede para que tenha cuidado com que lhe responderá ou sobre determinados assuntos que não poderão ser ditos a este terceiro amigo.

Diante deste fato Sêneca ficou intrigado com Lucílio, pois em outras palavras na mesma carta ele conseguiu afirmar e negar a amizade desta terceira pessoa. Já que claramente não confiava nela para tratar de seus assuntos.

Eu também fiquei impressionado com esta observação, eis que nunca parei para refletir sobre isso, como posso dizer que alguém é meu amigo se desconfio de sua lealdade? E mais, como é a relação de amizade dentro do estoicismo?

Dentro da filosofia do período helenistico é fácil observar que gregos e romanos tem total apreço sobre relacionamentos de reciprocidade e amizade, até porque estas sociedades eram muito politizadas e as famílias se fortaleciam por meio de valiosas alianças baseada na lealdade.

Para Plutarco, por exemplo, "A amizade deve ser escolhida com cuidado, uma amizade longa e constante traz o maior prazer."

Da mesma forma, afirmou Cícero, que "Nada é mais belo do que a amizade, mais verdadeira do que afeição e mais importante do que o amor."

Dentro das bases estoicas podemos ver que Musônio Rufo se manifestou favorável à importância da amizade, ao considerá-la como o maior bem que a natureza nos deu. Da mesma forma, Epicteto mostra-se como alguém que valoriza a amizade verdadeira, considerando que tais amigos são irmãos e irmãs que Deus nunca lhe deu, uma espécie de uma segunda família.

Mas porque tem tanto vídeo na internet que diz que um estoico deve ser sozinho? Que um estoico é inabalável diante dos sentimentos?

Para quem acompanha nosso canal, sabe da nossa preocupação com entender as bases metafísica do estoicismo, principalmente, o estoicismo da era em que Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio viveram, eis que são época em que o estoicismo já havia ganhado um tom mais religioso.

Mais ainda, o estoicismo não prega o individualismo e muito menos o egocentrismo em sua base metafísica. Por uma questão simples: os estoicos se baseiam na virtude, que somente pode ser alcançada através da temperança, prudência, justiça e bem comum. Para o estoico a natureza (ou deus se preferir) ela faz tudo de forma perfeita, sem qualificação de bem ou mal, eis que estes dois conceitos são algo humano. Desta forma, o homem somente pode alcançar a sabedoria e viver de acordo com a virtude, se ele for capaz de exercer a sua capacidade em prol do bem comum, pois os homens nasceram para o auxílio mútuo.

Você verá muito esta ideia presente nos discursos de Marco Aurélio principalmente no livro I e II de Meditações, eis que ora ou outra ele faz agradecimentos e se auto recrimina para agir de forma a entender que há pessoas muitos diferentes na vida em sociedade e que nem todas nos agrada, mas acima de tudo, é nosso dever compreender e agir de forma a promover uma boa convivência com elas, pois o homem nasceu para o auxílio mútuo.

Sei que deve estar pensando, agora ferrou então! Devo ser amigo de pessoas que não gosto então?

Não é isso, calma. Vou deixar Sêneca explicar melhor:

Se você considera qualquer homem um amigo em quem você não confia como você confia em si mesmo, você está muito enganado e você não entende o suficiente o que significa verdadeira amizade.

Sêneca propõe que façamos o seguinte exercício: quando a amizade é estabelecida, você deve confiar; porém antes que a amizade seja formada, você deve julgar.

Entendeu? Você deve avaliar bem as pessoas que permite entrar em sua vida, aquele em que você chama de amigo. Você deve fazer um julgamento prévio sobre o caráter desta pessoa, saber suas virtudes e vícios e entender se ela é digna de confiança.

Após fazer isso, somente assim, você poderá inclinar-se a chamá-la de amiga, sendo que uma vez selada esta amizade, você deve manifestar a confiança como a si mesmo, pois uma relação em que não haja confiança, não pode ser tida como amizade.

Mas agora tenho que ser eternamente amigo de alguém? Mas e se eu for traído?

Não é bem assim, Sêneca apenas diz que é incompatível com a natureza do homem chamar alguém de amigo, sem confiar nesta pessoa, pois assim você estaria fazendo algo contrário à natureza, algo prejudicial a si mesmo, que é viver duvidando daquele que tem como digno de confiança.

Por isso, você deve ser rigoroso no julgamento sobre o caráter de alguém que entrará na sua vida, pois quando você decide admiti-la, deverá acolhê-la com todo o seu coração e alma.

Sêneca ainda explica, que embora você deva viver de tal maneira que não saia por aí falando de todos assuntos sobre sua vida, uma vez que certas questões devem ser convencionalmente mantidas secretas, você deve compartilhar com um amigo pelo menos todas suas preocupações e reflexões, este é o papel da amizade, poder compartilhar soluções e trazer a luz alguma ideia durante uma discussão reflexiva sobre problemas que aparecem.

A ideia estoica de amizade é interessante à medida que ela é uma dádiva da natureza, desta forma se você tratar um amigo como leal, e você o fará leal. Alguns, por exemplo, temendo ser enganados, ensinaram os homens a enganar; por suas suspeitas deram a seu amigo o direito de suspeitar. Por que preciso reter alguma palavra na presença do meu amigo? Por que não me considerar sozinho quando em sua companhia?

Percebe o que Sêneca explicou? É importante ter boas pessoas ao nosso lado, embora há assuntos que são restritos a nós mesmos, há problemas e reflexões que são importantes de serem compartilhadas com um grande amigo, alguém leal. É preferível fazer isso do que sair por aí falando com qualquer um sobre assuntos que devem ser revelados aos amigos apenas, do que descarregar sobre o ouvinte desinteressado tudo o que os aborrece.

Outros, adverte Sêneca, mais uma vez, temem confiar em seus mais íntimos amigos; E se fosse possível, não confiariam nem sequer em si próprios, enterrando seus segredos no fundo de seus corações. Mas não devemos fazer nem uma coisa nem outra. É igualmente falho confiar em todos e não confiar em ninguém.

No entanto, Sêneca reflete que a primeira falha é, ou seja, de confiar em todos, ele se revela mais perigosa, mais ingênua, enquanto a segunda, embora prejudicial para nossa alma, ainda assim, esta paranoia é mais segura.

Mas e as amizades em tempos de redes sociais? Como as amizades são afetadas?

Observe que uma amizade construída através de redes sociais simplesmente, ele é de certa forma narcisista, pois eu não estou de posse de todas as informações biológicas, corporal e instintivas sobre aquela pessoa, desta forma, meu cérebro vai retirar de mim estas informações e vai criar um sensação de confiança no outro, mas algo frágil, muito superficial, pois quando eu começar a ter convivência real com esta pessoa acabará entrando em um modo de frustração inconsciente, pois tem uma idealização da amizade e um conflito com a pessoa real na minha frente.

É por isso, que devemos ser muito cautelosos com as amizades nutridas apenas em redes sociais, é importante que tiremos tempos para encontrar estas pessoas, que saibamos julgar e avaliar em quais efetivamente confiar, e buscar a tratar de problemas de forma presencial se possível ou mesmo através de recursos de vídeo, pois assim temos mais informações e reciprocidade na interação, evitando ruído de comunicação comum a conversas escritas por mensagens instantâneas.

Por óbvio tem sido cada vez mais difícil encontrar grandes amizades nos dias atuais, em parte pela a cultura contemporânea que frequentemente enfatiza a autonomia e a independência. Isso afeta a disposição das pessoas em construir amizades duradouras, pois nutrem a falsa ideia de que são melhores se não confiar em ninguém.

Parte deste comportamento é infantil e egoísta, eis que as pessoas formam relacionamentos de utilidade, perdendo o valor no primeiro obstáculo que encontram umas com as outras. Está cada vez mais raro, alguém que deixa um compromisso no final de semana para ajudar um amigo a instalar um painel de madeira na sala, ou ajudar na mudança.

As pessoas estão mais focadas em si mesmas, querem que tudo seja em prol de si mesmas. Se um amigo menciona que precisa pintar seu quarto, por exemplo, a primeira frase que lhe é respondida é de que “conheço um pintor maravilhoso”, e assim, empurro o problema para frente e não me comprometo.

O que então na minha opinião é uma amizade verdadeira segundo os princípios estóicos?

Uma amizade verdadeira é baseada na virtude, ou seja, deve-se ter em mente de que os valores e princípios que a outra pessoa manifesta, eles atendem a ideia de bem comum, de auxílio mútuo. É preciso enxergar no outro uma certa temperança, prudência, senso de justiça e de resiliência, alguém que seja digno de lealdade. Estabelecido a confiança, eu deve ter em mente que nem tudo sobre mim é algo a ser compartilhado com qualquer pessoa, por exemplo, a intimidade do casal, a intimidade dos filhos e do lar, meus ganhos familiares. Estes assuntos são reservados à minha família, eis que aos amigos verdadeiros nos cabe conversas que sirvam de reflexão sobre problemas que enfrentamos, coisas como onde consertar seu carro, um determinado trabalho manual em sua residência que não consegue resolver, um acontecimento que te deixou preocupado, determinados projetos para complementar a ideia.

É sim importante ter pessoas no mundo que nos ajude ao longo da vida, é fundamental ter confiança em nossas relações com pessoas que já avaliamos e julgamos dignas de confiança por tudo aquilo que reciprocamente vocês passaram e compartilham, eis que é da natureza do homem viver buscando o auxílio mútuo para o bem comum, e da mesma forma é de sua natureza nutrir boas amizades para não manter-se em solidão no mundo.

Ser forte não significa encarar tudo sozinho, mas saber como encarar as coisas da melhor forma, de modo a cuidar de sua própria saúde mental, para assim poder ser sua melhor versão para os outros.

A solidão não é a solução para seus problemas, pelo contrário, ser sozinho muda nosso cérebro e nos deixa vulneráveis neste mundo. Por isso, siga o conselho de Sêneca, busque boas pessoas para compartilhar os assuntos convenientes e aprenda a manter-se leal em suas amizades.



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